O Flamengo não anunciou só uma campanha; anunciou uma ambição: transformar a Nação Rubro-Negra na primeira “Nação simbólico-cultural” reconhecida por um órgão da ONU. A meta foi apresentada em 9 de setembro, com Zico como porta-voz em pronunciamento no Maracanã e um pedido de engajamento por meio de petição oficial — um gesto calculado para ocupar a agenda pública, o noticiário e, claro, os corações da torcida de 45 milhões. O clube fala em validação internacional de um fenômeno que já se manifesta “no Brasil e no mundo”, e convoca a massa a assinar em peso. ge+2Flamengo+2
Há, porém, um detalhe institucional que torna a iniciativa polêmica por natureza: a ONU, como sistema, não opera um “selo” para torcidas ou marcas esportivas. O reconhecimento formal de “patrimônio cultural” no âmbito das Nações Unidas acontece sobretudo via UNESCO, em listas específicas como Patrimônio Mundial (sítios) e Patrimônio Cultural Imaterial (práticas e expressões culturais) — categorias pensadas para bens culturais, não para clubes de futebol. Ao cravar que busca algo “ainda que em caráter simbólico”, o Flamengo já admite que está fora do trilho clássico dos mecanismos de chancela cultural. Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO+2UNESCO+2
O contexto doméstico ajuda a entender a ousadia. Em 17 de julho de 2025, o Estado do Rio de Janeiro sancionou a Lei 10.888/2025, declarando o clube “patrimônio histórico, cultural e imaterial” do estado. Ou seja, o Fla chega a setembro com um carimbo político-cultural recente, que dá musculatura simbólica à campanha global — e fornece munição para o discurso de que o clube “ultrapassa o esporte”. É escada perfeita para tentar internacionalizar um reconhecimento que já conseguiu no nível estadual. ge
Do ponto de vista de posicionamento, a ação é cirúrgica. Veículos do mercado publicitário registraram que a campanha foi criada pela Artplan, com estratégia de conteúdo da Quintal, mirando ampliar a percepção da marca Flamengo como ativo global e dialogar com “cases internacionais” de cultura e esporte. É o Fla consciente de seu tamanho — e usando uma moldura institucional (ONU) para maximizar alcance, imprensa espontânea e, principalmente, orgulho de pertencimento. É provocação com método. propmark
Os números iniciais contam a seu favor. Em 72 horas, a direção já falava em meio milhão de assinaturas e estabeleceu a meta de 1 milhão, com picos de 3,6 assinaturas por segundo no primeiro dia. Somou ainda 21 milhões de visualizações em sete reels no Instagram e um chat do YouTube com 560 mensagens por minuto no lançamento. É tração que qualquer campanha institucional inveja — e que reforça o objetivo declarado de “tornar visível” a identidade rubro-negra para além das quatro linhas. Poder360
Mas “simbólico” não significa “inquestionável”. Especialistas de mídia esportiva divergiram em rede nacional: em debate na ESPN, Osvaldo Pascoal chamou a ideia de “sacada de marketing espetacular” e negou qualquer pretensão de “soberania”; André Plihal reagiu com ceticismo — “ser considerado pela ONU uma Nação… ah, não é?” — por enxergar risco de soberba e efeito cascata no futebol. Zé Elias mostrou reserva (“se a moda pega…”), enquanto Zinho, ex-jogador do Fla, apoiou. O saldo: a própria natureza da proposta — entre o lúdico e o institucional — alimenta a controvérsia. Netfla
A crítica não veio só da cabine de transmissão. Em emissoras regionais, comentaristas como Luiz Gama (Rádio Bandeirantes Goiânia) atacaram a postura do clube, julgando exagerada a tentativa de colar o selo de “Nação” a um trâmite associado a relações internacionais. É a reação esperada quando um clube testa fronteiras do futebol com linguagem de chancela diplomática — e justamente por isso a campanha viraliza: porque provoca. Instagram
Do lado jurídico-institucional, há outra aresta: a dificuldade de encaixar uma torcida organizada — por maior e mais influente que seja — nas arquiteturas normativas do patrimônio cultural internacional. As listas da UNESCO descrevem processos, critérios e escopos que falam de tradições, saberes, expressões e lugares; não de entidades esportivas. O Flamengo tenta, então, um “atalho” narrativo: em vez de pedir inscrição de um bem cultural (p. ex., um rito, uma música, uma prática), pleiteia o reconhecimento de uma “nação afetiva” — um coletivo difuso, transnacional, cuja a ligação entre seus membros é a paixão. Como tese cultural, é potente; como procedimento, é heterodoxo. Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO
É aqui que o debate fica bom — e incômodo. Se a ONU (ou algum de seus braços) ao menos acusar o recebimento dessa ideia, abre-se um precedente retórico para outros gigantes globais (de Boca a Real Madrid, de K-pop a Marvel) reivindicarem “nações simbólicas”. Talvez esse seja exatamente o ponto: não obter um selo que não existe, mas gerar uma conversa que só um colosso popular conseguiria provocar. A campanha, nesse sentido, já venceu: pautou imprensa, mobilizou base, tensionou fronteiras entre cultura popular, política e mercado — e expôs o desconforto de quem acha que futebol precisa “ficar no seu lugar”.
Meu veredito: como política cultural, a ideia é uma performance; como estratégia de marca, é um golaço. O Flamengo costura um arco que vai da lei estadual de patrimônio à evocação de organismos multilaterais, produzindo um “efeito ONU” que legitima — para dentro e para fora — sua condição de fenômeno cultural brasileiro. Se a chancela formal vier? Improvável. Se precisa vir para a campanha cumprir sua promessa? Não. No jogo da cultura, a validação mais poderosa continua sendo a prática social — e, nisso, a Nação já é patrimônio há muito tempo. ge+1
No fim, resta a pergunta que dá título a este texto: a ONU vai encarar a Nação? Talvez nem precise. O próprio desenho da ação revela que o objetivo não é burocrático, é simbólico: pressionar a gramática do patrimônio a reconhecer que torcidas também são comunidades culturais — com músicas, rituais, mitologias, heróis e um território emocional que atravessa fronteiras. Se a diplomacia não tem formulário para isso, o Flamengo inventou um: uma petição-manifesto com Zico à frente, milhões de cliques atrás e uma discussão que, goste-se ou não, já entrou para o arquivo da cultura popular brasileira.
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